Corpo de Evidência – 2020

No final de 1999 eu pedi demissão da agência e vendi meu carro para me mudar para os Estados Unidos, com a intenção de aprender inglês. Como a única viagem ao exterior que eu tinha feito até então tinha sido o fim-de-ano anterior em Nova York, alguns amigos vieram me alertar sobre o racismo nos EUA. Eu ouvi uma estória sobre Renato Russo tirando onda de ter um sotaque neutro o suficiente para se passar por israelense, e como isso deveria ser considerado vantajoso.

Eu não me senti intimidada, mas tomei um fôlego grande antes de embarcar. No fim das contas, ao longo dos 16 anos seguintes eu me tornei fluente, encontrei uma comunidade, vivi nas cinco vizinhanças de NYC e desenvolví uma profissão – tudo com um sotaque brasileiro pronunciado, e do tal racismo: nada. Aqueles alertas se apagararam na minha mente. Eu não me considerava mais “estranha”.

Até as eleições presidenciais de 2016. De repente, não mais que de repente, as coisas mudaram. A expressão Fragilidade Branca entrou no meu vocabulário pela chaminé, aterrissando com um baque e uma nuvem de fuligem. O poder do governo federal contra imigração passou a ser gabado. As conexões com a polícia tornaram-se motivo para puxar conversa. Insinuações foram feitas. Um punhado de gente passou a não gastar mais energia com seus próprios fracassos. De repente, quase misteriosamente, esses indivíduos se tornaram os donos da bola. Minha presença aqui passou a ser questionada: nessas situações, eu me tornei aquela “outra pessoa”: uma estrangeira, em posição vulnerável.

Corpo de Evidência (Body of Evidence) é minha resposta ao clima desses últimos quatro anos. Originalmente concebido para conter apenas um poema e um ensaio, o projeto cresceu a 30 páginas para caber tudo que me deu nos nervos a cada ciclo de notícias, a cada tuítaço, a cada desastre, a cada atrocidade. Livros de artistas são narrativas rítimicas por natureza, e apesar de uma certa falta de linearidade, esse se manteve o caso. Uma estória sem fio, como acontece com aqueles que vão levando a vida a curto prazo: minha “trajetória” enquanto imigrante – não do tipo de imigrante que sentiu horrores infligidos na carne, mas como imigrante-testemunha, o tipo de imigrante que teve “escolha”, e que “escolheu” ir em frente e continuar na labuta. Como Agnes Martin escreveu: “não somos os instrumentos do destino nem somos peões do destino: nós somos o material do destino”.

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* back and front covers

Esse livro foi impresso nas cores do patriotismo norte-americano: vermelho e azul sobre branco, porém com a adição de todos os tons de cinza. É moldado como um envelope com abas abertas, dobradas longitudinalmente. Por design, é incapaz de se manter em pé.

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Todas as imagens são do meu bairro no norte de Manhattan, historicamente um santuário de imigrantes. Elas foram impressas a partir de xilogravuras, fotogravuras, processos fotográficos alternativos, serigrafias e chapas de fotopolímero. O livro é encadernado em guardas, e as capas são painéis de couro lacunoso com relevos e depressões, e incrustadas com cascas de árvore e madrepérola. É uma edição de 09 exemplares numerados, a serem encadernados e personalizados a pedido.

As chapas e a impressão das fotogravura foram feitas por Aurora De Armendi. As serigrafias foram possíveis graças a uma bolsa de estudos do Fine Arts Work Center em Provincetown, Massachussets.

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Passagens dos meus diários relacionadas com a minha experiência de 20 anos enquanto artista imigrante formaram o texto, complementadas com citações de Fernando Pessoa, Rebecca Solnit, Emily Dickinson, William James e Agnes Martin. A impressão foi feita na oficina de tipografia do The Center for Book Arts, usando a coleção de tipos da casa.

Das duas, uma: ou eu trabalho muito devagar, ou o ritmo da história ficou mais rápido (provavelmente as duas). Durante o tempo que levei para criar e imprimir esta edição, as emergências climáticas e políticas se agravaram. Os últimos quatro anos foram uma passarela de desastres ambientais e humanitários, culminando com a pandemia e a crise da justiça racial. Como Nova York foi por um tempo o epicentro do COVID19, eu não pude frequentar o ateliê e acabei encadernando a primeira Prova do Artista na privacidade do meu quarto.

Enquanto isso, Bolsonaro foi visto competindo com Trump pela posição de pior líder de todos os tempos. As mensagens entre mim e minha família eram apenas tentativas corajosas de produzir um sorriso de um lado para o outro, com pequenos sucessos. Fui uma das finalistas em um concurso, e durante a entrevista (online) me perguntaram se o momento presente vai deixar uma marca no corpo do meu trabalho.

Marcas? Não, meu senhor: cicatrizes.

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Um fato curioso: a encadernação tem uma imagem apotropaica oculta no revestimento da espinha. De acordo com a página da Wikipedia, a palavra “apotropaica” vem

Do grego antigo ἀποτρόπαιος (apotrópaios), de ἀπό (apó, “distância”) e τρόπος (trópos, “turn”); assim, significa “fazer as coisas se afastarem”, como em “se afasta o mal”. (esconjurar?)

Como Georgious Boudalis mencionou em “O Códice e os Ofícios da Antiguidade”: Livros e corpos eram vulneráveis ​​e o fato de esforços serem feitos para proteger tanto livros quanto corpos alude ao seus poderes.

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Por razões de força maior, apenas o meu primeiro nome ficou visível.

Este projeto foi possível com o apoio da Fundação Pollock-Krasner.

Meus sinceros agradecimentos para
Aurora De Armendi
Delphi Basilicato
Sonia Cordeiro
Maureen Cummins
KS Lack
Celine Lombardi
Sarah Nicholls
Sarah Perron
Jessica Russ
Abby Schoolman

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*fotografia: Argenis Apolinario


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